quarta-feira, 21 de maio de 2008

Missão Berlengas

(resolvi partilhar aqui, o 'chorrilho de letras' do 'naoligoaninguem' que circulam no meu email)
17 de Junho de 1905
É terça-feira de manhã em Berna. O padeiro de dedos tronchudos de Marktgasse discute com uma mulher que ainda não pagou a última conta. Ele gesticula violentamente, enquanto ela, calmamente, mete para o saco mais um pão de centeio que acabou de comprar. à porta da padaria, uma criança corre de patins atrás de uma bola atirada da janela de um primeiro andar, raspando ruidosamente com os patins nas pedras da calçada. No extremo leste de Marktgasse, na esquina com Kramgasse, um homem e uma mulher estão abraçados na sombra de uma arcada. Passam dois homens por eles de jornal debaixo do braço. Trezentos metros mais a sul, uma ave sobrevoa o Aare em voo planado.
O mundo pára.
A boca do padeiro detem-se a meio de uma frase. A criança parece flutuar a meio de um impulso, a bola fica suspensa no ar. O homem e a mulher são duas estátuas sobre a arcada. Os dois homens são estátuas também, e a sua conversa interrompida como quando se levanta a agulha da vitrola. O pássaro pára de voar e queda-se imóvel sobre o rio, qual adereço suspenso sobre um palco.
Um microssegundo depois, o mundo entra de novo em movimento.
O padeiro continua a arengar como se nada se tivesse passado. Do mesmo modo, a criança volta a correr atrás da bola. O homem e a mulher abraçam-se ainda mais. Os dois homens continuam a sua discussão sobre a subida dos preços da carne. O pássaro bate as asas e continua a descrever o seu arco alado sobre o Aare.
Daí a uns minutos, o mundo pára outra vez. E logo recomeça. Pára. E recomeça.
Mas que mundo será este? Neste mundo o tempo não é contínuo. Neste mundo o tempo é descontínuo. O tempo é um feixe de fibras nervosas: aparentemente contínuas à distância, disjuntivas, porém, quando examinadas de perto, com espaços microscópicos entre elas. Os impulsos nervosos percorrem um segmento de tempo, param abruptamente, fazem uma pausa, saltam sobre o vácuo e continuam no segmento seguinte.
As zonas de descontinuidade são tão minúsculas que um único segundo teria de ser ampliado e dissecado em mil partículas, e cada partícula em outras mil, para se poder detectar uma partícula de tempo em falta. As zonas de descontinuidade são tão minúsculas que os espaços existentes entre os segmentos são praticamente imperceptíveis. Depois de cada recomeço do tempo, o novo mundo parece exactamente igual ao anterior. As posições e os movimentos das nuvens parecem exactamente os mesmos, tal como as trajectórias dos pássaros, o fluir das conversas, os pensamentos.
Porém, os segmentos de tempo encaixam-se de forma quase perfeita, mas não completamente perfeita. De vez em quando há alguns desfasamentos pequeníssimos. Por exemplo, nesta terça-feira, em Berna, um rapaz e uma rapariga de vinte e poucos anos estão encostados a um candeeiro em Gerberngasse. Conheceram-se há um mês. Ele ama-a perdidamente, mas já sofreu muito por uma mulher que o deixou sem qualquer explicação, e tem medo do amor. Precisa de ter a certeza de que esta mulher o ama. Estuda-lhe o rosto, tenta desvendar em silência os seus verdadeiros sentimentos, procura o mais pequeno indício, o mais leve arquear de sobrancelhas, o mais ténue rubor nas suas faces, uma lágrima nos seus olhos.
Ela na verdade também o ama, mas não consegue traduzir em palavras esse amor. Em vez disso, sorri para ele, inconsciente dos seus receios. Enquanto os dois continuam imóveis à luz do candeeiro, o tempo pára e retoma o seu curso. Depois do recomeço, a inclinação das suas cabeças é precisamente a mesma, o pulsar dos seus corações não sofreu alteração. Porém, algures nos recantos mais recônditos da mente da rapariga, surgiu um pensamento sombrio que não estava lá anteriormente. A rapariga segue o pensamento até ao inconsciente e, ao fazê-lo, uma vaga expressão de ausência ensombra-lhe o sorriso. Brevíssima, esta hesitação teria passado normalmente despercebida, excepto à mais minuciosa observação. No entanto, o rapaz, em toda a sua ansiedade, reparou nela e tomou-a pelo tal indício que procurava. Então, diz à rapariga que não pode voltar a vê-la, regressa ao seu pequeno apartamento de Zeughausgasse, e resolve mudar-se para Basle, para ir trabalhar no banco do tio. A rapariga desencosta-se do tal candeeiro de Gerberngasse e volta a pé para casa, devagar, procurando entender por que razão o rapaz não a amava.
Alan Lightman,
Os sonhos de Einstein

Para ler, repetindo os movimentos
Da mão direita à outra do mesmo homem vai por vezes uma distância obscura. Não se trata de uma parte esconder intenções ou até acções. É outra coisa.
Quando, para receberes alguém, abres os braços, a referida distância aumenta e a mão, em cada ponta, assinala um certo modo com que o teu corpo se dispersa. Quando o abraço se concretiza e nas costas do outro as mãos finalmente se reencontram, formalizam um símbolo ao mesmo tempo desolador e esperançoso; é que só nas costas do outro as tuas partes se unem com uma energia digna de admiração. Experimenta, sem outro corpo no meio, unir com força, com violência até, as tuas mãos, e verás o ridículo, perceberás a diferença de intensidade.
Mas por vezes - como bem sabes - não há outro corpo.
Gonçalo M. Tavares,
Sobre o medo

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